terça-feira, 3 de abril de 2007

Prestando reverência à HQ, "300" renova um gênero do cinema



A estréia do filme "300" em 550 salas brasileiras a partir de hoje (sexta-feira), 30 de março, significa mais uma vitória para o marketing cinematográfico – especialmente os bolsos dos envolvidos na produção – do que para os admiradores da HQ originária e seu autor, Frank Miller.

Não que a adaptação seja ruim – ela não é. É que o circo em seu redor extrapolou a obra em si. Pouco importa do que se trata – o filme virou assunto do momento em quase todos os veículos de imprensa ocidental. Sobre a reepercussão no oriente, trataremos um pouco mais abaixo.

No Brasil, foi alta a febre nas semanas precedentes à estréia. Boa parte da quentura proveio da presença de Rodrigo Santoro no elenco, o que certamente fará diferença na bilheteria nacional de “300”, e nada mais. Interpretando a divindade digitalmente adulterada Xerxes (o Rei da Pérsia) durante duas ou três seqüências, Santoro não ajuda nem atrapalha. É certo que, para o ator, o papel coadjuvante (ou co-protagonista) pode garantir a oportunidade de trabalhar, desta vez com seu próprio corpo e voz, em outras boas produções. Já para quem assiste, bem, qualquer um poderia estar no lugar de Santoro.

A agressiva estratégia da produtora Warner, onipresente na mídia publicitária e espontânea (imprensa e fãs de quadrinhos), talvez tenha sido adotada tendo em vista a camisa de força em que sua cria se meteu: com a proibição para menores de 18 anos (certamente menos pelas duas cenas de sexo do que pelo sangue característico e constante nas histórias de Miller), a horda de adolescentes fissurados em “Senhor dos Anéis” ficou excluída. Os excessivos efeitos especiais e bichos estranhos de “300” com certeza fariam a cabeça deles.

Assim como os 157 minutos que mostram como inúmeras espadas se enfiaram nas carnes de quem lutou na Batalha das Termópilas, em 480 a.C., não chegam a compor um exemplo do que se chama filme épico, no sentido clássico (Ben Hur, Spartacus, Gladiador, Alexandre). Ponto a menos entre os adultos mais conservadores.

Sendo assim, como explicar as centenas de milhões que o filme dirigido por Zack Snyder (A Madrugada dos Mortos) vem arrecadando nestas três semanas em cartaz nos EUA? Enquanto Snyder humildemente repete mundo afora que sua pretensão foi “apenas quis fazer uma adaptação fiel à graphic novel”, Hollywood e sua máquina mais feroz do que a ira dos espartanos liderados pelo Rei Leônidas (em boa interpretação de Gerald Butler), mostra as suas garras.

Ao que parece, pela primeira vez sentida com toda a sua força no Brasil. A super-coletiva de imprensa ocorrida no Rio duas semanas atrás convocou 60 jornalistas latino-americanos, num evento de luxo inédito na terrinha – até então, o México ou os EUA era o anfitrião para os junkets. O resultado? Basta dizer que neste fim de semana de estréia a imprensa multiplica massiva e mais ou menos homogeneamente o mesmo mantra: incenso em Snyder, Butler e Santoro, interpretações políticas contestadas, milhões de dólares, etc. Poucos são aqueles que fizeram da própria coletiva a notícia, explicitando os mecanismos que regem a atual indústria de cinema americana.

Finalmente, ao filme. Mais transposição do que adaptação. Nada tão obsessivo quanto o quadro-a-quadro de Sin City, outra obra de Miller celebrada no cinema. Aqui, há alguns enquadramentos idênticos às páginas da HQ, intercaladas com seqüências que só a tecnologia do atual cinemão blockbuster pode oferecer: slow motion / fast-foward, manobras radicais de câmera, centenas de camadas de filtros e efeitos afins.

Praticamente toda a filmagem foi realizada em fundo azul, ou seja, com cenários criados em computador. O que permitiu a almejada “fidelidade” não só na caracterização dos personagens e seus diálogos. A luz, as belas cores de Lynn Varley, os cenários e até o traço espesso e áreas cheias de pontos granulados, estética adotada pelo desenhista permaneceram intactos. Uma estética que funciona extremamente bem no papel, em imagens estáticas. Ora, os excessos de “Sin City” já provaram que cinema não é quadrinhos em 24 frames por segundo. Em “300”, a presença da linguagem dos quadrinhos está melhor dosada, o que não impediu um cansativo clima de artificialidade.

Nem uma vírgula da narrativa original foi retirada, sendo uma tramóia acrescentada provavelmente para aumentar o papel de uma mulher entre tantos homens na tela. Nela, a rainha espartana (Lena Haedey) tenta convencer os subornados políticos gregos a apoiar a defesa do território capitaneada por Leônidas.

Quanto à trilha sonora, destaque para a cena em que os 300 espartanos marcham ao som pesado de guitarras. Renovação pop no gênero épico histórico? Muito provavelmente.

História da luta de uma minoria contra a expansão do mais poderoso império até então, “300” tem gerado interpretações contraditórias no tocante aos conflitos contemporâneos. A história tanto pode ser atualizada como a resistência árabe contra o deus Xerxes-Bush, quanto, no extremo oposto, ser entendida como um discurso de superioridade ocidental sobre o obscurantismo bárbaro dos persas / árabes.

Daí os protestos que fizeram o filme ser banido dos cinemas do Irã, país remanescente da Pérsia. Não ameniza a situação a máxima bushiana proferida aos gregos antes da luta decisiva contra os “bárbaros” persas: “hoje livraremos o mundo da tirania e misticismo”. Polêmica sempre é bom para aumentar o caixa.

Resenha originalmente publicada no site da Continente Multicultural

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