terça-feira, 24 de abril de 2007

"Música para os Olhos": um filme à altura do poeta



Uma maravilha assistir a "Cartola - Música para os olhos" no Cinema da Fundação. Sala lotada, prazer compartilhado em silêncio, ou nem tanto: alguns cantaram baixinho as músicas do mestre. Enquanto esperava na fila, me veio a pergunta que fiz desde quando soube da produção, em 2004, enquanto Lírio Ferreira e Hilton Lacerda (também autores de "Baile Perfumado") disseminaram delírio e poesia com "Árido Movie": "um carioca não contaria com mais propriedade a vida de Angenor de Oliveira?"

A dúvida, estendida por três anos, acabou em poucos minutos. Fica claro que este não pretende ser "o" documentário sobre o sambista; será muito melhor aproveitado se entendido como "um" olhar que extrapola o personagem, aqui reconstruído de forma bem subjetiva, em imagens de arquivo, trechos de filmes nacionais, entrevistas para TV e rádio, e na fala dos amigos e familiares. A montagem é um grande mérito: hipertextual, caótica, imprevisível e entrecortada, aos poucos recria o contexto social, político e cultural do período vivido por Cartola (1908-1980).

Verbalmente, não há novidade - e nem precisa. A história de Cartola já está bem contada e recontada, da juventude boêmia para compositor e fundador da Mangueira, os anos de ostracismo, o resgate cult nos anos 60, a importância da família e a lamentada morte por câncer. Por outro lado, o material de arquivo informa mais do que a escrita pode revelar: os modos de falar, vestir e se expressar; os ambientes, as locações onde se deu boa parte da história do samba.

A abordagem é outro caso à parte. O bairro da Mangueira, por exemplo, chega através dos fios de eletricidade, as casas saindo do quadro, fora de foco. Os arcos da Lapa entram em cena pela sombra projetada nas ruas. O próprio Cartola se faz presente assim, sutil e enviezado.

Na primeira parte, ele surge aos poucos, em uma ou outra foto, com falas dispersas, um centro invisível em que giram os demais elementos. O uso de quadros dramáticos para preencher a falta de registro dos primeiros tempos lembra o excelente "The Soul of a Man", onde Wim Wenders faz o mesmo para recuperar trechos da vida de Blind Willie Johnson. Blues, samba, música negra.

"Música para os olhos" é também um diálogo com o cinema brasileiro. Nele, imagens do enterro de Cartola conversam com "Di", de Glauber, proibido no Brasil pela família do pintor. Trechos de "Brás Cubas", a adaptação de Julio Bressane para o clássico machadiano, clama pela liberdade de criação frente à importância de um ícone cultural do samba. Mário Reis arremessando discos no mar e cantando em estúdio foram pinçadas de "O Mandarim", outro filme de Bressane aqui invocado, cujas cenas exibidas ao contrário com certeza inspiraram a sequência de imagens da ditadura militar.

Em meio a tantas referências e documentos antigos, surge um recado maior do que a importância de Cartola: a necessidade de cuidar melhor de nossa memória coletiva. Fitas VHS amassadas, películas deterioradas e depoimentos desmagnetizados são problemas que poderiam pesar contra a qualidade do filme, não fossem usados a seu favor. Solução bem conhecida do cinema periférico, acostumado a transformar limitação técnica em recurso de linguagem.

São essas infinitas citações, aspecto tão instigante aqui quanto a figura de Cartola, o elemento gerador de algumas críticas negativas. Isso porque, neste documentário, o cinema tem uma carga poética tão grande quanto àquela contida em Cartola. Equilíbrio mantido até os últimos quinze minutos, quando a montagem ágil e inteligente cede espaço para a exagerada e quase submissa reverência ao compositor. Um deslize que não tira o brilho deste filme atípico entre as recentes cine-biografias nacionais.

Por fim, é muito bom constatar que, em nenhum momento, a produção pode ser considerada "pernambucana". Seu olhar não tem origem, é simplesmente "estrangeiro". A despeito dos inevitáveis pernambucanismos e carioquismos, "Música para os olhos" é, antes de tudo, brasileiro.

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