terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Adeus ao humanista



Diretor de Aruanda, o pernambucano Linduarte Noronha morreu aos 81 anos na madrugada de ontem, após uma série de problemas de saúde. Nascido em Ferreiros (Zona da Mata Norte) ele se mudou cedo para a Paraíba, onde desenvolveu carreira de jornalista, fotógrafo, geólogo, crítico de cinema, realizador e professor universitário, atividade na qual se aposentou em 2001.

De acordo com seu filho, Leonardo Noronha, nos últimos meses Linduarte se tratou de uma catarata no fim do ano passado, mas recentemente contraiu pneumonia e apresentou complicações no fígado. Há dez dias foi internado, com dificuldades respiratórias e insuficiência renal. Às 5h de ontem, morreu de parada cardio-respiratória.

No final dos anos 1950, após exercer a crítica cinematográfica no jornal A União, Linduarte se aliou ao fotógrafo (também pernambucano) Rucker Vieira e ao paraibano Vladimir Carvalho para realizar Aruanda, sobre um quilombo formado em meados do século 19, por escravos libertos no sertão da Paraíba. Então diretor do Instituto Nacional do Cinema Educativo, Humberto Mauro providenciou a ele uma câmera 35mm.

Lançado em 1960, o curta de 22 minutos repercutiu imediatamente nas mentes que viriam a criar o cinema novo. Basta observar a evolução estética entre o primeiro curta de Glauber Rocha, Pátio (1959) e seu primeiro longa, Barravento (1962). “Não só Barravento, mas Deus e Diabo na terra do Sol (1964) e Vidas secas (1963) têm elementos de Aruanda”, observa o professor e crítico de cinema Lúcio Vilar. Desde 2005, ele também organiza o Fest-Aruanda do Audiovisual Brasileiro.

Não raro, Aruanda é considerado o marco zero do documentário antropológico brasileiro, até então restrito ao formto clássico, educativo. Nele, Glauber e seus companheiros encontraram a resposta ideal à hegemonia das chanchadas da Atlântida e comédias da Vera Cruz. “Ele sintetizou uma inquietação que foi parte de uma tendência mundial contra o cinema-espetáculo”, diz o professor e crítico, Alexandre Figueirôa. “Aruanda tem no bojo a denúncia social, o questionamento da realidade e não camufla ou glamouriza as condições precárias com que foi feito, ou seja, a base da estetica da fome idealizada por Glauber”.

“Estive três ou quatro vezes com Linduarte e ele me pareceu uma pessoa generosa e um tanto modesta, considerando a importância de seu trabalho”, diz o pesquisador e professor de cinema, Paulo Cunha. “Mesmo que sem ter a intenção, Aruanda tornou-se um marco pelo impulso quase instintivo de fazer um cinema realista, em condições longe das ideais e transformá-las em formas estéticas expressivas. Por exemplo, para driblar a falta de iluminação ele destelhava as casas para filmar as pessoas em ambiente interno. Com isso, criou imagens impactantes”.

Linduarte dirigiu outros dois curtas: o curta Cajueiro nordestino (1962) e o longa de ficção Salário da morte (1970). Em 1964 foi vítima da ditadura, que o proibiu de exercer funções públicas. “O pretexto foi a compra de uma câmera russa, mas a notoriedade obtida com Aruanda foi o real motivo. Mas ele nunca pertenceu a partidos políticos, religiosos ou ideológicos. Era um humanista”, diz Vilar, autor de um documentário sobre o episódio, Kohbac, a câmera vermelha (2009).

Sobrinha de Linduarte, Cecília Noronha diz que a família guardará a memória do cineasta “em toda a sua essência e verdade”. Nos últimos anos de vida, ele vinha escrevendo suas memórias para futuramente lançar em livro. São manuscritos sobre os anos em que foi perseguido e detalhes do itinerário que levou a Aruanda. “Vamos cuidar de todos os detalhes e dar continuidade ao seu trabalho”, diz Cecília.

(Diario de Pernambuco, 31/01/2012)

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