sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Alma não tem cor



Filmes sobre tensão racial são recorrentes nos Estados Unidos. Indicado a quatro Oscar, Histórias cruzadas revisa o tema sob o ponto de vista de mulheres, divididas entre negras netas de escravos e suas patroas, brancas e mimadas. Não é difícil se compadecer em lágrimas com o sofrimento e tragédias pessoais trazidos pelo filme. Elas protagonizam a miséria humana cotidiana, manifestada explicitamente no início dos anos 1960 em pequena cidade do Mississipi, sul dos EUA. Claro que, de maneira mais ou menos velada, são relações que poderiam ser encontradas em qualquer época ou lugar; estamos falando do ritual coletivo de submissão, não necessariamente racial. E nem é preciso ir tão longe. No Brasil, empregadas domésticas ainda são itens de necessidade básica.

Há boas chances de Histórias cruzadas se cobrir de estatuetas no fim deste mês. Ele é politicamente correto, emocionante e com grandes atuações. Principalmente Viola Davis (Intrigas de estado), que vive Aibileen, dedicada ama seca que a cada humilhação abaixa os olhos com um resignado “yes, mam”, mas os levanta carinhosamente para encorajar a pequena criança pela qual é responsável. A convite de Skeeter (Emma Stone, de Zombieland e Superbad), garota branca de viés liberal (ao contrário das demais jovens, prefere ser jornalista a caçar um marido), Aibileen começa a contar a sua história. O objetivo é organizar um livro que revele as crueldades cometidas na intimidade do lar. Criada por ama negra, a própria Skeeter tem motivos pessoais para levar à frente o projeto.

Dirigido por Tate Taylor, Histórias cruzadas remete a dois grandes momentos do cinema racialmente engajado, como Mississipi em chamas (Alan Parker, 1988) e A cor púrpura (Steven Spielberg, 1985). Enquanto Kennedy é assassinado, os discursos de Luther King transmitidos em rede nacional e as canções de Johnny Cash e Bob Dylan sopram no vento, uma aurora libertária é construída em escala microscópica, com a câmera fixada nas cozinhas e quintais.

Ponto de mutação para os direitos raciais, a escolha da época é precisa para ilustrar a tomada de consciência das mulheres negras, sintetizada na figura de Minny (Octavia Spencer), a empregada rebelde que se vinga da patroa má, para então se aliar à branca excluída Elisabeth (Ahna O'Reilly) contra a liga republicana da moral e bons costumes. A mesma que, aliás, obrigava aos negros a seguir um código de conduta surreal, um apartheid que inclui o uso de banheiros e livros escolares.

(Diario de Pernambuco, 03/02/2012)

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